segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Chaplin, por Orlando Fassoni (Parte 3)

"O sujeitinho usa calças-balão, tem os pés chatos e a aparência do mais miserável e enxovalhado bastardo do mundo. Coça-se a todo instante, como se tivesse piolhos nos sovacos. Mas como é engraçado!"
Carlitos existia. Fez 35 filmes para a série Keystone, de Carlitos Repórter, o primeiro, atéSeu Passado Pré-Histórico, o último. Foi escroque, trapalhão, vagabundo, bêbado descontrolado, suicida apaixonado, pensionista, namorado vingativo, travesti pela primeira vez (em A Busy Day, onde usou os vestidos da atriz Alice Davenport), falso conde, árbitro de boxe, marido de Mabel Normand em Dois Casais Encrencados onde, por pouco, ele não se casa com a atriz.
Na Essanay, para onde foi por 10 mil dólares só de luvas, Chaplin dirigiu e interpretou os 14 filmes que fez, trabalhando, até Luzes da Ribalta, de 1952, com o fotógrafo Rollie Totheroh, uma união profissional de 40 anos seguidos, coisa rara na história do cinema. Thoteroh morreu em 1967. Começou, ali, como candidato a um lugar num estúdio em Seu Novo Emprego, de 1915, passando por ébrio em Uma Noite Fora ou Carlitos se Diverte, a comédia onde estreou Edna Purviance, que seria, mais tarde, atriz inseparável de Carlitos. Em abril de 1915 ele realizou aquele que seria seu primeiro clássico: O Vagabundo (The Tramp). Até então não precisara de mais nada senão um parque, um policial e uma moça bonita para criar suas irresistíveis gags, sua pantomima notável, seu personagem esdrúxulo e mal costurado dentro das calças, das botinas, enfiado no chapéu roto. Mas, a partir de O Vagabundo ele insere na sua temática novos elementos pungentes e patéticos: a estrada vazia, o amor verdadeiro, a infelicidade estampada no sorriso de frustração do clown, nos gestos que antes serviam apenas para realçar o humor e agora já passavam a ser elementos integrados de um processo de representação que transmitia dor e levava as pessoas às lágrimas.
Entre 1915, data de seu primeiro filme clássico, até 1967, Chaplin fez 39 filmes. Alguns deles - oito pelo menos - são obras que qualquer estudioso, pesquisador ou historiador do cinema coloca, sem comentários, entre o que foi feito de melhor, mais alto e mais humano na comédia cinematográfica.
Elementos embrionários adquirem sua função definitiva na composição do personagem. Era o último estágio do clown e o primeiro filme em que ele se empenhava em narrar uma história segundo os modelos tradicionais, isto é, com início, meio e fim, começando pelo encontro de Carlitos com os ladrões que tentam roubar a garota, na estrada, o modo como ele a salva e é ferido, tratado e recuperado, até o aparecimento do noivo da moça e, para ele, a eterna frustração de ver-se preterido apesar de todo o heroísmo. Chaplin teve aí sua primeira chance em fazer da estrada e da paixão alguns dos elementos que estariam presentes em boa parte de suas obras posteriores. Inclusive o patético que levava as platéias não apenas a rir com seu personagem mas também a chorar com ele.
Terminaria, a partir daí, o primitivismo na criação chapliniana. Já é acentuada a transformação que ele opera mo personagem nas fitas seguintes: Carlitos na Praia, cheio de frescura e poesia; Limpador de Vidraças, onde a correria típica da Keystone é mais rebuscada e a perseguição final atinge um ponto de rara perfeição artesanal; A Woman, tema de vaudeville que ele valorizou com um estupendo travesti, hoje clássico; O Banco, um dos filmes mais fortes da Essanay, com Carlitos no papel já bem desenvolvido do ser ingênuo que necessita de compreensão e amor em uma história que vários estudiosos viram como o embrião de Em Busca do OuroCarlitos Marinheiro, com seu show de malabarismo, um clássico de pantomima; Carlitos no Teatro, com Ben Turpin, reminiscência notável da fase de Fred Karno e do burlesco de sua época com Mack Sennett. Em 1915, ainda, Chaplin fez uma paródia da ópera Carmen, de Bizet. Transformou-a numa sátira selvagem e diretamente dirigida à adaptação feita por Cecil B. De Mille que estava sendo lançada na ocasião.
Carlitos Policial, ainda em 1915, foi o seu último filme na Essanay, estúdio que ele abandonou no fim daquele ano. E, tal como havia acontecido em Carmen, foi também montado por outros, com o uso de material deixado por Chaplin na companhia. Três anos mais tarde a Essanay lançou um filme intitulado Triple Trouble (Três Vezes em Apuros), feito de fragmentos de Limpador de Vidraças e outras comédias.
"O futuro, o futuro, o maravilhoso futuro. Aonde me conduziria? As perspectivas eram estonteantes. Como uma avalancha, dinheiro e êxito chegavam de forma sempre crescente. Tudo era perturbador, amedrontador, mas maravilhoso." Chaplin descreve assim ointermezzo entre a sua saída da Essanay para, sob contrato com a Mutual, fazer lá 12 filmes ao preço de 670 mil dólares. (Continua)

Chaplin, Por Orlando Fassoni (Parte 2)

Foi em 1914, com 25 anos de idade, que Chaplin estreou em Los Angeles, num pequeno filme intitulado Carlitos Repórter. Até chegar lá e iniciar sua caminhada rumo à legenda, comeu o pão que o diabo amassou. Nascido às 8 horas da noite de 16 de abril de 1889 em East Lane, Walworth, Londres, o menino Charles Spencer Chaplin tinha uma mãe, Hannah Hill, e o pai, "um homem calado, taciturno, parecido com Napoleão", viciados em álcool. Não conheceu o pai, viu-o apenas algumas ocasiões, nos bares. Era um ator que tinha abandonado a família. Chaplin viveu a infância miserável dos deserdados da sorte e, quando a mãe perdeu as condições de mantê-los - ele e o filho mais velho, Sidney -, os três são obrigados a viver à custa do asilo de pobres de Lambeth.
Mas aos 5 anos de idade ele já havia entrado num palco. Foi numa noite em que ela, representando, perdeu a voz. O público ria, zombava. E o pequeno Charles, ali escondido, assistia ao vexame com os olhos em lágrimas, sem compreender o que se passava. A platéia ameaçava arrebentar o teatro quando alguém o puxou pela mão e meteu-o no palco para substituir a mulher, retirada dali às pressas. Ajeitou-se e cantou Jack Jones quando, no meio cançonete, desabou uma chuva de moedas sobre ele. Dançou, sentiu-se à vontade, fez mímicas. "Essa noite - lembra em sua autobiografia - marcou a minha primeira aparição em cena e a última da mamãe."
Chaplin não descobrira, então, que nascia ali, também, a sua espontaneidade, depois levada aos extremos. A situação de extrema miséria faz dele um entregador em mercearia, depois recepcionista de consultório médico, garoto de recados, empregado de papelaria, soprador de vidros, tipógrafo, vendedor de trapos no mercado londrino etc. Já era um pobre e indefeso menino que passava o dia vagabundeando, catando migalhas, fugindo dos credores da mãe, hospitalizada. De quando em quando aparecia numa agência teatral de Blackmore e um dia deu sorte: queriam-no para representar Billie numa peça chamada Jim, O Romance de Um Cookney. Duas libras e dez xelins por semana. "Já não era mais um vagabundo dos bairros miseráveis: agora era um personagem de teatro e tinha vontade de chorar."
Aos 17 anos foi ator juvenil, mais tarde ganhou um papel em comédia pastelão da companhia de Fred Karno. Em 1909, aos 20 anos, viajou com o grupo a Paris. Voltou à Inglaterra, teve alguns êxitos e fracassos com Karno. E, um dia, encontrou a chave: ir morar e trabalhar nos Estados Unidos. Era tudo ou nada, agarrar ou largar, sair-se bem como cômico ou lavar pratos a vida toda. Aí tudo começou.
Na estréia do espetáculo de Fred Karno nos EUA, os críticos notaram "ao menos um inglês engraçado". Ele, Chaplin. Já guardava dinheiro, o que fez durante toda a vida. Retornou a Londres e, de volta à América, foi contratado pela Keystone, por Mack Sennett, a 150 dólares semanais, contrato de um ano e direito a 25 dólares semanais de aumento depois dos primeiros três meses.
E então, no pequeno filme intitulado Carlitos Repórter, ele aparecia pela primeira vez de fraque, chapéu alto, bigode de pontas viradas para cima, a verdadeira antítese da humildade, um tipo meio vilanesco, mau-caráter metido a besta a quem queriam dar o nome de Edgar English. Não gostava dos trajes que usava no filme. E num estalo, a caminho do guarda-roupa, caracterizou-se, embora de forma embrionária, com as calças largas, estilo balão, os sapatos enormes, o casaquinho justo no corpo, o chapéu-coco e a bengalinha, roupas que, misturadas a outro elemento que adicionou para parecer mais idoso do que era - o pequeno bigode -, já davam forma ao maior palhaço de todos os tempos: Carlitos.
E sua psicologia? O tipo, conta Chaplin, tinha muitas facetas: vagabundo, cavalheiro, poeta, sonhador, solitário, romântico, aventureiro, capaz de passar por cientista, músico, nobre, esportista e milionário com a mesma facilidade com que podia catar pontas de cigarros, roubar pirulitos de criancinhas ou dar pontapés nos traseiros das damas, no auge da raiva. "Meu tipo era diferente e não se aproximava de qualquer outro que os norte-americanos conheciam."
Em 1914 Chaplin faz vários filmes para Sennett. Ia desenvolvendo o tipo nas pequenas comédias dirigidas por Henry Lehrman, ora pelo próprio Sennett ou pela atriz preferida da companhia, Mabel Normand. Fez Corridas de Automóveis para MeninosCarlitos Garção,Carlitos e Os Guarda-ChuvasDia de EstréiaCarlitos DançarinoCarlitos Entre O Bar e O AmorCarlitos e A PatroaCarlitos Banca O Tirano e Vinte Minutos de Amor.
A variação do seu tipo era constante, mas o próprio Chaplin afirma que Carlitos não nasceu num estalo. Foi o produto de um processo, um tipo que imitava os componentes de um outro grande humorista da época, Max Linder.
Georges Sadoul, o historiador, afirma que, em sua origem, Carlitos é "um Max na pindaíba que tenta comicamente conservar a dignidade. Mas Chaplin era o vagabundo com alma de aristocrata; Linder, o aristocrata com alma de vagabundo". As diferenças entre um e outro são que Linder, janota, sedutor, andar de pato e indefectível cartola, simbolizava a belle époque, que morria aos poucos; e Charlot nascia exatamente no período da I Guerra, quando o sorriso e a galanteria eram violentamente rompidos pela desilusão, a morte, o massacre e a miséria.
Então Max Linder, a representação humorística do prazer, conforto, fineza e cavalheirismo, dava seu lugar a um sucessor que se faria mais notável como figura humana: o vagabundo Carlitos, nascido dos destroços da guerra. (Continua)

Chaplin, por Orlando Fassoni (Parte 1)

Charles Spencer Chaplin morreu dormindo aos oitenta e oito anos de idade, sessenta e três deles dedicados a saudar, com o riso, as gerações de todo o mundo que não esquecerão Carlitos. Um símbolo inesquecível do homem espezinhado pelo destino, do fraco, do desajeitado e do desprevenido, do deserdado e do homem puro tentando sobreviver num mundo hostil e doente de sentimentos. Enquanto viveu, soube ser grande, levou aos confins a sua ternura pelos oprimidos, pequeno e ridículo palhaço de olhos melancólicos, andar desengonçado, irreverente vagabundo cheio de ilusões, miserável, impotente, simplório e primitivo homenzinho mergulhado no cotidiano. Niilistas, inquietos, cristãos, rebeldes e anarquistas o chamaram para seu lado, porque viram nele a defesa mais pura dos inocentes contra os abusos dos intolerantes e os preconceitos dos poderosos. Deus queria um presente no dia do Natal. E levou Chaplin pra morar com Ele.
A morte de Chaplin não significou a morte da comédia cinematográfica. A comédia, no seu melhor estilo, já estava agonizante desde que Carlitos saiu de cena, em 1940, depois de O Grande Ditador. Não morria o humor, morria porém toda a sua essência, o Carlitos, notável vagabundo desajeitado e triste que durante anos seguidos representou, com seus admiráveis gestos, sua mímica e seu humanismo, a alma do riso e da alegria. O homenzinho pequeno e fraco que percorreu as estradas de pó transmitindo esperanças, que defendeu crianças e cães, que transformou seus pontapés numa espécie de justiça não-oficial dos oprimidos contra os opressores, herói e anti-herói de um mundo em danação que precisava de um símbolo como ele, botinas velhas, bengala barata, bigodinho curto metido num rosto que podia, num segundo, metamorfosear toda a sua angústia num espantoso sorriso de satisfação para oferecer ao menos um leve sopro de otimismo e confortar os que choravam.
Depois de ver algumas vezes seguidas a sátira em que Chaplin, através de seu clown, ridicularizava as pretensões dominadoras de Hitler em O Grande Ditador, um crítico norte-americano profetizava a morte da comédia dizendo que quando Charles Spencer Chaplin morresse o cinema dificilmente encontraria alguém para substituí-lo. Acertou. A ausência de Chaplin deixa o humor cinematográfico praticamente órfão de pai. E quem tem acompanhado o desenvolvimento da comédia sabe que é impossível ao cinema encontrar quem reprise o homenzinho que nos seus 25 anos de vida simbolizou a máxima expressão da ternura e do grotesco, que foi uma espécie de consciência da primeira metade do nosso século, figura humana e poética que jamais deixou de acompanhar todos os grandes movimentos e transformações políticas e sociais de seu tempo, aderindo a elas como seu crítico mais implacável. Com Carlitos morreu, também, uma parte de todos nós.
Chaplin fez seu último filme em 1967: A Condessa de Hong Kong. Já não era nem o mesmo diretor e menos ainda o acrobático Carlitos de calças surradas, gestos rápidos e passos largos fugindo de policiais, driblando credores, protegendo cegos e mocinhas. Vivia na sua paz doméstica com Oona, a filha de Eugene O'Neil que fez questão de cumprir todos os seus pedidos. O principal deles: um enterro simples no cemitério de Vevey, perto de onde morava desde o começo dos anos 50, quando decidiu ir viver em paz na Suiça, sem possibilidades de voltar aos Estados Unidos porque fora acusado de simpatizante com o comunismo, ou à Inglaterra, onde tinha problemas com o fisco.
Aos 88 anos de idade, não tinha mais o que fazer. Recebia visitas de quando em quando, ia assistir aos espetáculos do circo montado na pequena cidade. Em 1972 os norte-americanos, envergonhados, reabilitaram-no. Ele foi convidado a voltar aos EUA e, embora as más recordações sejam impagáveis, concordou em receber a homenagem da Academia de Hollywood: o Oscar que o cinema negara a quem dera, talvez, a maior contribuição para o desenvolvimento da arte cinematográfica. Confissão pública de um imperdoável erro atribuído aos ortodoxos e aos radicais, o fato mereceu do New York Times um comentário sentencioso:

"Se uma nação pudesse enrubescer coletivamente, os Estados Unidos tinham uma boa razão para isso quando seu mundo oficial decidiu, duas décadas atrás, Que Charles Chaplin não podia retornar a este país antes de demonstrar seu valor moral. Felizmente os guardiães das virtudes desta terra parecem ter amadurecido suficientemente para não temer pela segurança política e moral da América quando, hoje, o criador do querido, patético e engraçado vagabundo retornar do seu exílio europeu."

Era 10 de abril de 1972 e o editorial do jornal americano emendava: 

"As honras que esperam Carlitos em Hollywood pouco acrescentarão ao já firmemente estabelecido aplauso popular e julgamento crítico. Mas elas significam uma saudação, ainda que demorada, à vitória da arte e do humor sobre a rigidez burocrática."

Aos 88 anos de idade, com as forças já minadas pelo tempo, Chaplin ainda tinha planos. Pensava em três projetos, um deles The Freak, com suas filhas Josephine e Victoria nos papéis principais de uma história poética, ao seu estilo. Tinha também em mente um filme sobre um condenado à morte que descobre a beleza da vida ao escapar da prisão, bem como um terceiro, sátira social sobre as reações de uma comunidade ante um fenômeno sobrenatural. Não teve tempo de iniciar nenhum. Insistia sem necessidade. Se tivesse parado seu trabalho na metade da carreira, aí por volta dos anos 20, já teria feito o suficiente para entrar na galeria dos gênios do nosso século, tal a dimensão, a riqueza e a profundidade da obra que desenvolveu e aos elementos com que construiu Carlitos, sem dúvida o mais universal de todos quantos foram os personagens já criados na história do cinema.

(Continua)